sábado, 28 de setembro de 2013

As armas de lá; as armas de cá

Do lado de lá, bem longe, na Síria, uma guerra civil estourou. E entre aliados do governo e rebeldes, armas químicas foram usadas. Quem usou as armas? Não se sabe. Os EUA acusam o regime de Bashar al-Assad. A Rússia diz que foi a oposição. No meio das acusações, o governo da Síria nega ter usado tais armas, mas não nega possuí-las.

Para a guerra civil síria, poucos se importaram. Ninguém se preocupou com os mortos pela guerra. Ninguém se preocupou se a guerra é justa, se o governo é tirano ou se os rebeldes têm razão. Problema dos sírios. A preocupação são suas armas. As armas de lá matam muitos sírios, mas estadunidenses, franceses, alemães, russos e outros poderosos não estão preocupados com os sírios. A preocupação deles é não ser a próxima vítima. Fala-se em intervenção militar. Fala-se em acordo para destruição das armas. Enfim, fala-se de e preocupa-se com Síria. A comunidade internacional quer agir, de alguma forma, para evitar o uso das armas podem causar destruição em massa. Destruição, claro, de suas massas.

Enquanto isso, do lado de cá, no nosso Brasil, também temos as nossas "armas de destruição em massa". Não são químicas, mas matam multidões a cada ano. Bandidos armados "até os dentes" com armas de uso exclusivo das Forças Armadas, ou seja, armas de guerra, dominam comunidades inteiras nas periferias de algumas de nossas maiores cidades. Com o poder das armas, destroem a paz e a tranquilidade das comunidades. Com o poder das armas, sustentam o tráfico de drogas e ganham muito dinheiro. Com o poder das armas, destroem o futuro dos jovens. Com o poder das armas matam, matam e matam nossas massas.

Nossas "armas de destruição em massa" não são químicas, mas matam e destroem. As armas de lá chamam a atenção internacional. As armas de cá, não. Enquanto os brasileiros vão morrendo, não tem Barack Obama, Angela Merkel ou Vladimir Putin que se preocupe com nossas armas, mesmo que, por vezes, turistas norte-americanos, alemães ou russos sejam atingidos. Pior que isso. Se não chamam a atenção deles, as armas de cá, ao que parece, não chamam a atenção nem das autoridades locais. Todos sabem o nome dos principais traficantes, sabem as comunidades que dominam, mas nossas autoridades não falam (ou pouco falam) em intervenção.

As armas daqui não chegam à toa na mão dos bandidos. Nossas fronteiras estão abertas para suas entradas e até mesmo a autoridade policial, que deveria estar ao lado dos que são do bem, se associa aos bandidos e contribui para manter seu poder. Enquanto isso, quando se quis, os governantes "pacificaram" as comunidades que interessavam, aquelas que "precisavam". Que coisa bonita, os bandidos em fuga aparecendo na TV! Ficou por isso mesmo. Outras comunidades não tiveram a mesma sorte.

A preocupação internacional, com as armas de lá, é bem diferente da preocupação nacional, com as armas de cá. As armas daqui viraram coisa comum. Não parecem surpreender mais, não parecem preocupar quem tem o poder-dever de manter a ordem. Com elas, só se preocupam suas vítimas indefesas. Que a preocupação internacional com as armas sírias sirvam de exemplo para acordar a preocupação nacional com armas daqui. Um sonho distante. Bem distante. Apenas um sonho.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O voto de Celso de Mello: uma aula de Direito e uma triste realidade

Quando soube que o Supremo Tribunal Federal iria julgar a admissibilidade ou não de um recurso dos mensaleiros, chamado Embargo Infringente, procurei saber do que se tratava. Logo de cara, entendi, apesar das controvérsias em torno do assunto, que era um recurso previsto em Lei e que, por isso, seria facilmente aceito. Muito ruim, pois adiaria ainda mais o resultado final dos processos e por mais tempo continuariam soltos os mensaleiros, antes de iniciarem os cumprimentos de suas penas.

Para minha surpresa, no primeiro dia de julgamento, apenas 4x2 pró-embragos. Mais surpreendente ainda foi o segundo dia, que terminou empatado em 5x5, faltando apenas o voto de minerva. Durante uma semana, passei a ter esperanças de que o improvável pudesse acontecer e que os embargos infringentes poderiam ser negados. Apesar de entender que os embargos infringentes fossem legais e de alguns amigos terem me alertado que o Ministro Celso de Mello, há alguns meses, já havia se manifestado a favor do tema, eu quis acreditar que eles poderiam ser negados. Torci muito para isso, mas, ... mas,... não deu!

Agora a opinião pública "caiu de pau". Acusa os juízes de contribuir para a impunidade, de beneficiar os corruptos e até de trabalhar para os interesses dos poderosos. Para muitos, o STF "caiu nos seus conceitos" como instituição e deu um atestado de aprovação à roubalheira. A verdade é que, antes das críticas ferozes direcionadas a quem votou a favor, se a grande maioria das pessoas comuns entendessem um pouquinho mais tecnicamente o que de fato estava sendo julgado, saberia que não foi bem assim. Todos nós torcemos para que os mensaleiros sejam punidos o mais dura e rapidamente possível, mas nossa emoção não pode se sobrepor à razão.

Em primeiro lugar, o julgamento da admissibilidade dos embargos não estava avaliando o mérito dos processos. Em outras palavras, não julgava se Dirceu e seus "companheiros" eram ou não inocentes ou se deviam ou não ir para a cadeia. Julgava, sim, se o recurso por eles requerido era ou não válido, pois havia divergência na Corte. E essa dúvida que surgiu, por acaso, justamente no processo do Mensalão, precisaria ser tirada, pois, a partir de agora, valerá para todo e qualquer julgamento do STF. Em segundo lugar, a questão não era se os "embargos infringentes dos mensaleiros" eram ou não legais, mas sim se "embargo infringente" como recurso, independentemente do processo, deve ou não ser acolhido na última instância do judiciário. Não sou magistrado, nem estudante de Direito, mas, pelo pouco que procurei me informar sobre o tema, acredito ser legal, pois está previsto no Regimento Interno do STF e não há Lei que o tenha revogado. Então, só nos resta lamentar. Além do mais, não é correto afirmar que o resultado da análise dos embargos infringentes transformou o julgamento do Mensalão em uma "grande pizza". Não é verdade, pois ninguém foi absolvido, apenar confirmou o direito de alguns dos mensaleiros terem seus julgamentos revistos, dentro da Lei. É claro que qualquer revisão abre a possibilidade de mudar o resultado, mas os julgadores serão os mesmos que, no primeiro julgamento, condenaram. Então, esperemos que as penas sejam mantidas (Oremos!).

Não surpreende que o STF tenha dirimido a dúvida, decidindo pela validade do recurso. O mais surpreendente nesta decisão foi o placar apertado: 6 a 5. Não entendo como os ministros do Supremo, pessoas estudadas e teoricamente preparadas para julgar com independência, imparcialidade e serenidade, de forma "fria" e "cega" (como a Justiça deve ser), sem levar em consideração desejos pessoais e emoção e com base apenas no que diz a Lei, possam divergir tanto. Aliás, o voto do Ministro Celso, até por ter sido o último, rebateu muitos argumentos dos que votaram antes dele. Seu voto foi uma verdadeira aula de Direito. Doa em quem doer. Muitos dos seus argumentos (para nossa infelicidade) considero tecnicamente perfeitos, entre eles, os seguintes:
  • [Juízes] não podem deixar contaminar-se por juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar a manifestação de juízes e tribunais. 
  • O direito ao duplo grau de jurisdição é indispensável. Não existem ressalvas [quanto a isso] pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
  • Embora todo o poder emane do povo, a representação popular junto ao Poder Judiciário não é exercida diretamente e, portanto, não se dá no campo das escolhas políticas, mas da aplicação do Direito.
  • Ninguém, independente da gravidade do crime cometido, pode ser privado das garantias fundamentais do direito de defesa, independente da vontade antagônica da coletividade.
  • Por fim, sobre a dúvida se a Lei 8038/90 teria revogado a existência de embargos infringentes no Regimento do STF, argumentou que a Lei não tratou da extinção deles no STF e que cabe ao Poder Legislativo decidir, com exclusividade, sobre a extinção ou não da norma. Além disso, que, inclusive, projeto de lei já havia sido enviado ao Congresso, anteriormente, pedindo a extinção dos embargos infringentes e foi por este rejeitada.
Se você não leu, clique aqui para ler o voto do Ministro Celso de Mello, na íntegra (são "só" 30 e poucas páginas).

Não adianta reclamar do STF, nem do ministro A ou ministro B. O recurso existe, é legal e foi (tecnicamente falando) corretamente aceito. Temos que reclamar e lamentar muito, sim, é do fato de isso estar previsto na legislação judiciária. O direito à ampla defesa e do contraditório é justo. O que está errado é essa quase eterna possibilidade de recursos existir, pois só adia as decisões finais e termina por beneficiar os réus de tal forma que os torna praticamente impunes. Essa Legislação precisa mudar. Ela deve garantir sim o direito de defesa, mas também precisa garantir a razoável duração dos processos para permitir que os mesmos possam chegar ao final e que os criminosos possam começar a ser punidos. No caso específico do Mensalão, chega a ser revoltante ver que o maior escândalo de corrupção da história do país, que se tornou público desde o ano de 2005, ainda não tem seu julgamento concluído e que ninguém ainda foi preso. Mais revoltante ainda é saber que, devido ao acolhimento dos embargos infringentes, o "rejulgamento" poderá adiar tanto a decisão final que muitos dos crimes poderão prescrever e muitos dos "pré-condenados" ficarão impunes. Queremos acreditar que "a Justiça tarda, mas não falha", mas dói saber que, na prática, "ela não é feita porque tanto se retarda".