"Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las". Foi François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, quem pronunciou esta frase no século XVIII. Onde quer que hoje esteja, Voltaire deve se remoer todo ao assistir de camarote à polêmica atual em torno das biografias não autorizadas.
Voltaire defendia a liberdade de expressão, algo que em nossa sociedade atual, felizmente, é considerado senso comum. A Constituição Federal atual garante a liberdade de expressão, mas o Código Civil, em nome da defesa à vida privada, prevê que a publicação de biografias dependa de prévia autorização do biografado ou de sua família (quando não vivo). A polêmica surgiu quando esta previsão começou a ser questionada. Hoje, a questão é discutida no Congresso Nacional, através de um projeto para mudar o Código Civil, e também no STF, onde a constitucionalidade dos artigos do Código Civil, referentes ao assunto, é questionada. Contrário às mudanças está o movimento Procure Saber, encampado por alguns artistas de renome, que defendem o direito à privacidade.
É perfeitamente compreensível o posicionamento dos artistas. Afinal, quem gostaria de ver publicados fatos verídicos do seu passado dos quais se envergonha? Quase todo mundo tem algo no seu passado que não gosta de ser discutido ou mesmo revelado. Ocorre com pessoas anônimas, quanto mais com pessoas conhecidas. E quando os fatos narrados não são verídicos ou mesmo não comprovados (boatos, fofocas,...)? Neste caso, as consequências para as pessoas publicamente expostas são duradoras, mesmo que a verdade venha a ser somente mais tarde conhecida. Enfim, eu vos entendo, caros artistas, mas não concordo com vocês!
Comparemos uma biografia, a matérias de jornais, revistas ou blogs. Quando matérias como estas são escritas, elas dizem, basicamente, que ALGUÉM acabou de FAZER ISSO ou que acabou de DIZER AQUILO. Em suma, uma matéria de jornal, revista ou blog conta fatos sobre alguém que estão acontecendo (presente). Uma biografia, pobremente falando, nada mais é do que a narração de fatos que ocorreram (passado). Em outras palavras, é como se os jornais, revistas e blogs escrevessem partes de uma biografia diariamente, em tempo quase real. A diferença básica entre elas é apenas temporal. Se é permitido reportar a vida de alguém em tempo real, por que seria proibido reportar um resgate do passado deste mesmo alguém?
A liberdade de expressão é importante, mas, certamente, deve ter limites. O direito de expôr pensamentos, ideias e opiniões ou, simplesmente, de relatar informações deve ser garantido, porém a responsabilidade pelo que é exposto deve ser um dever que acompanhe sempre esse direito. A verdade deve ser o primeiro compromisso de quem quer ser "livre para expôr" o que pensa, da mesma forma que as consequências por calúnias, difamações e injúrias proferidas. Assim, os biografados devem ter o direito de não reconhecer as biografias, mas não de proibi-las simplesmente por não concordar com elas. É admissível que os fatos nelas relatados sejam questionados judicialmente e, até mesmo, que a obra seja, posteriormente, devido a isso, proibida. É admissível que o autor seja processado quando falte com a verdade ou insinue situações que firam a honra do biografado. Mas é inadmissível a publicação seja previamente censurada.
Os debates sobre as biografias têm se concentrado, sobremaneira, na questão da privacidade, pois tem se pensado muito em biografias apenas de artistas (cantores, atores, atletas, ..), mas não devemos nos esquecer das biografias de outras personalidades de relevância histórica. Lembremos que a vida de políticos, pensadores, revolucionários e outros ícones históricos também são alvos de biografias. Não é razoável pensar que biografias do ex-presidente Lula, ou do ex-presidente Collor, ou do poeta Ariano Suassuna ou de Chico Mendes só possam ser feitas com o consentimento dos mesmos ou de suas famílias. Uma biografia que só traga fatos autorizados pelo personagem não é uma biografia, é apenas um relato positivo para exaltá-lo. O interesse histórico é suficientemente relevante para justificar a obra, mesmo a contragosto do personagem em questão. Claro, sempre pautada na verdade.
A grande questão em jogo é saber qual o limite da liberdade. Até que ponto a verdade pode ferir a honra ou ser considerada difamação? Como provar que os fatos narrados podem ser inverdades? Como comprovar a boa-fé do autor? Como separar a liberdade de expressão da invasão de privacidade. Esses são os pontos mais complexos que necessitam de maior discussão e aprimoramentos, não a proibição de biografias não autorizadas. Estas, pelo menos para mim, não deveriam ser pura e simplesmente pré-censuradas.
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