"Você aguarda ansiosamente durante o dia todo. Chega a hora do programa. Você está de olhos grudados na TV. Você não quer nem piscar para não perder nem um segundo sequer..."
Parou! Parou! Está errado. Não é mais assim que acontece. Onde está o erro? Vamos começar de novo sendo mais atual.
"Você aguarda ansiosamente durante o dia todo. Chega a hora do programa. Você está com um olho na TV e outro olho no celular. Você assiste e comenta. Comenta e assiste. Você não quer perder uma curtida ou comentário dos amigos. E você comenta de novo..."
Agora sim. O segundo trecho descreve o fenômeno chamado "segunda tela". É a nova forma de assistir TV da geração sempre conectada. Para esta geração, não basta mais assistir, é preciso comentar, é preciso opinar, é preciso ver as reações de outras pessoas e, claro, sempre durante o programa. É assim durante um jogo de futebol, durante o último capítulo da novela, durante aquela luta da madrugada, um debate pré-eleitoral ou mesmo durante o concurso de novos cantores na TV. Por uns instantes, a "atração principal" chega a ficar em segundo plano. A impressão que dá é que tem mais gente de olho na segunda tela que na primeira. Para alguns, a segunda tela chega a ser até mais interessante que a primeira.
Essa nova forma de ver TV mudou nossos hábitos e a nossa forma de interação. A quantidade de comentários durante os programas é tanta, e em tão pouco tempo, que é possível "assistir" ao programa sem ao menos ligar a TV. Basta olhar a rede social e você sabe o que está ocorrendo naquele jogo que você não está vendo. Você "vê" tudo através dos olhos dos outros. Alguns chegam até a opinar sobre o andamento do programa, mesmo sem vê-lo literalmente.
Lembro de tempos atrás, desde o tempo dos vídeos-cassetes, quando a gente gravava os programas que não poderia assistir para vê-los depois. Hoje, com os registros (quase) permanentes na internet, a "gravação" na segunda tela é instantânea. Um dia desses, por exemplo, utilizei este "recurso". Não costumo ficar acordado para assistir MMA, mas, ao acordar num dia de domingo, bateu a curiosidade de saber o resultado da última luta de Anderson Silva. Poderia ter apenas consultado um site de notícia, mas preferi olhar a timeline em ordem cronológica, desde antes da luta. Acompanhei cada round e o desempenho dos lutadores somente pelos comentários de quem assistia à luta. Fiquei sabendo tudo como ocorreu, quem estava melhor a cada momento, até o resultado final. Praticamente assisti a um "vídeo tape".
Fico curioso de saber quanto tempo as pessoas que costumam usar a segunda tela, efetivamente, conseguem assistir na primeira tela. Por exemplo, num jogo de futebol, quanto tempo de uma partida de noventa minutos você está olhando para TV ao invés de olhando o celular, ou seja, quanto tempo você realmente viu do jogo? Arrisco-me a dizer que é meio a meio. Chega a ser engraçado: você esperou tanto por aquele jogo e só viu 45 minutos. Os outros 45 minutos você estava de olho na segunda tela, escrevendo ou lendo. Coitados dos patrocinadores, que pagam milhões para estampar suas marcas em volta do campo. Pagam por duas horas de exposição e são vistos por metade do tempo. Mas você também não ria deles. Você também caiu nessa: pagou caro pelo pay-per-view e viu só metade do jogo. :)
Os veículos de comunicação já há algum tempo se adaptaram a esse novo comportamento do seu público. Hoje, alguns programas de TV costumam mostrar na tela os comentários dos telespectadores, escritos, claro, nas redes sociais. Antigamente, alguns programas, quando tinham alguma interação com o público, pediam para o telespectador ligar para um número de telefone; hoje pedem para "curtir" sua página ou deixar uma mensagem. De certa forma, perceberam que seu público olha para outra tela e busca a atenção dele, trazendo-o de volta para a primeira.
Uma outra curiosidade me vem a mente: se as pessoas não estão olhando constantemente para a TV, como podem opinar com alguma precisão em rede social? Não é verdade? Lembro logo do tempo da escola, quando a professora dizia: "primeiro, prestem atenção, depois vocês copiam". Em outras palavras, com a atenção dividida, a chance de não compreender a cena, o lance, o acontecimento é enorme. E esse ruído se reflete na qualidade dos comentários. Em programas de entretenimento,não chega a ser tão problemático, mas, e nos programas mais "sérios"? Num programa de entrevista, por exemplo, ou num debate político? Como opinar sobre algo que você não prestou atenção, ou seja, que você não compreendeu direito? E como faz quando, ao invés dos telespectadores, são os "artistas" da TV que, enquanto estão apresentando o programa, simultaneamente, também estão de olho na segunda tela? Em determinado canal de TV, por exemplo, o comentarista do jogo de futebol divide seu tempo comentando a partida e lendo alguns comentários da rede social. Com a atenção dividida, é capaz de sua interpretação da partida ser tão imprecisa quando dos telespectadores.
A interação social vem mudando muita coisa no mundo. Essa nova forma de ver TV é apenas um exemplo desta mudança. A segunda tela já se incorporou de um jeito em nossos hábitos que praticamente não nos demos conta. Quando percebemos, ela já estava ali. Este artigo trouxe alguns exemplos de situações que já se incorporaram no nosso cotidiano e algumas reflexões a respeito. Os canais de documentários estão cheios de reportagens sobre a segunda tela. Assista algumas e veja outras reflexões sobre o tema. Se você ligar a TV agora, pode até estar passando uma neste momento. Vá lá e ligue a TV! Aposto que você também vai olhar, na segunda tela, o que estão comentando a respeito.